quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Bico de Ferro/ Jardim dos Namorados



O Parque Jardim dos Namorados é um dos parques de Salvador.


Na  área  onde  está  hoje  o  Parque  Jardim  dos  Namorados, havia  a  invasão  do  Bico  de  Ferro, nome  de  um  bar  bastante freqüentado  do  local.  A  invasão  inicialmente  era  ocupada por  pescadores  e  foi  paulatinamente  invadida  por  uma população  de  renda  média  e  alta  que  lá  construiu casas  de veraneio. O prefeito,  Antonio  Carlos  Magalhães  (ACM),  em 1969,  determinou  a  demolição  de  cerca  de 300  casas construídas  na área do  Bico  de Ferro. 

"(...)  A  luta  começou  em  1962.  ACM  em  1967  determinou  a demolição  de  250  casas  de  luxo  e impediu  a  construção  de mais  50,  num  dos  casos  mais rumorosos da época(...) Na manhã de 29/11/1967  dia  em  que  foi  deflagrada  a  “operação Bico  de  Ferro”  foi  iniciada  a  derrubada  de imóveis  com ACM à  frente.  Houve  protesto  dos  proprietários  dos  imóveis  e aplauso  da  população.  (....)  Após  a  demolição  a  prefeitura iniciou  o  trabalho  de  urbanização  da  área  construindo estacionamento,  quadras  de  esporte  área  de  recreação infantil,  rinque  de  patinação  pista  de aeromodelismo  com belvedere."


A  inauguração  do  Jardim  dos  Namorados  ocorreu  no  dia  31 de  março  de  1969,  comemorando  os  430  anos  da  cidade  e os cinco  anos  da  “revolução”,  golpe  militar  de  1964, pelo  então prefeito  Antonio  Carlos  Magalhães,  na  mesma  data  foi também  inaugurada  a  Avenida  Antonio Carlos Magalhães.
Localizado no bairro da Pituba, foi implantado em frente a Praia do Jardim dos Namorados anteriormente conhecida como praia do Chega Nêgo por ser local de desembarque de escravos. 

"Era um motel a céu aberto e daí a denominação popular que passou já uma geração e tudo indica ficará para sempre.
O Jardim dos Namorados era então um grande estacionamento no entorno de uma das primeiras churrascarias da cidade, com pouca iluminação, perfeito para namorar.
Não existiam muitos moteis na época e os poucos que existiam, ficavam muito distantes do centro da cidade. Então, a solução era namorar na rua mesmo.
Os casais chegavam de carro no entardecer e estacionavam um ao lado do outro, com todo respeito às vagas do vizinho; as sextas feiras tinha fila de espera a uma prudente distância e quem estava agoniado resolvia alí mesmo, na fila, antes de adentrar na vaga. Quem estava nessa fila enxergava apenas, no escurinho do estacionamento que tinha iluminação muito precária, os carros balançando, alguns deles com vidros embassados, mas ninguem se atrevia a andar pelo calçadão para espiar aos outros. 
Um dia chegaram os carrinhos de cachorro-quente e os curiosos que fingiam fazer cooper, mais tarde, chegaram os ladrões. Então vieram os assaltos, a violência, o risco de ser roubado e até estuprado e o Jardim dos Namorados deixou de ser o motel a ceu aberto da cidade para ser um “jardim” deserto."         
Nelson Cadena



Link:
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Parque_Jardim_dos_Namorados
http://blogs.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2012/12/12/jardim-dos-namorados-e-o-habito-de-namorar-no-carro/
CORREIO DA  BAHIA, 09/02/1999,  p.2
http://www.revistas.usp.br/paam/article/view/86610 

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Rua da Valla - J.J. Seabra (Baixa dos Sapateiros)



A Baixa dos Sapateiros nunca foi um lugar cheio de pompa, muito pelo contrário. Guarda desde sempre uma atmosfera de comércio popular, daqueles simples, com muito movimento para lá e para cá. 

A rua cantada pelo mineiro Ary Barroso, ganhou essa fama por reunir um bom número de italianos que trabalhavam em suas fábricas de sapatos, árabes que trabalhavam com couro e um monte de sapateiros. Na época, bastava uma chuvinha para alagar tudo que vinha do Rio das Tripas.

Até o início do século XIX boa parte da Baixa dos Sapateiros ainda era um pântano. Era conhecida como a Rua da Valla e a região tinha bastante vegetação e muitas árvores de jacarandá, cuja madeira era usada em construções da Cidade.

Só depois de uma drenagem no final do século XIX, onde o Rio das
Tripas foi tubulado a uma profundidade de 7 metros pelo governador J.J. Seabra ministro da Viação e Obras Públicas, de 1910 a 1912, e governador da Bahia, em dois períodos: 1912 a 1916 e 1920 a 1924, que a enorme avenida trocaria de nome oficial e levaria o nome do seu benfeitor.

Matadouro da Bahia

Pouca gente sabe, mas o primeiro matadouro da Bahia funcionava no terminal de ônibus da Barroquinha. As vísceras dos bois eram jogadas numa vala que nasce no local, chamada na época de Vala de Cidade. Com o tempo, as pessoas começaram a chamar a Vala de Rio das Tripas, explica o historiador Cid Teixeira.

“(...) Das hortas feitas no brejo limite da doação saía o rio que foi durante anos a vala da cidade, defesa natural da parte leste – a mais vulnerável – do sítio primitivo da cidade. Lá, à margem, tão logo houve gado disponível, fizeram-se os abates para consumo dos moradores. Das vísceras lançadas no curso d’água, um topônimo – Rio das Tripas. Para entulhar o alagadiço, fez-se da orla do pântano o depósito de lixo da cidade (...)”.

As primeiras alusões à existência de um matadouro público em Salvador, situam-no no século XVIII, na área contígua ao Mosteiro de São Bento, denominada à época de Hortas de São Bento e situada onde atualmente fica a estação Barroquinha.

Durante todo século XVIII, e até o início do século XIX, foi ali que existiu o Matadouro Público, ainda abastecido do gado que vinha pela Feira do Capoame. Em vários espaços próximos às Hortas de São Bento, existiram currais menores onde o gado esperava o abate, desde o dia anterior, para a madrugada do dia seguinte.

O abatedouro saiu dali e foi para o Barbalho, mas o nome ficou gravado.

A Vala da Cidade nascia na Rua da Barroquinha, atravessava a Praça das Veteranos e passava pela área que hoje é a Baixa dos Sapateiros até chegar aos Dois Leões, onde se encontrava com o Rio Camurugipe. O historiador explica que boa parte do que hoje se conhece por Baixa dos Sapateiros era , na verdade, a Vala da Cidade.

“No início, a Baixa dos Sapateiros era apenas aquele trecho abaixo do Pelourinho, entre o Passo e o Taboão. Entre as décadas de 60 e 70 do século XIX, alguns vereadores contrataram José de Barros Reis para cobrir a vala e transformá-la numa rua”, conta Teixeira. Barros Reis fez uma obra de engenharia e transformou a Vala da Cidade na Rua da Vala, que por extensão também passou a ser chamada de Baixa dos Sapateiros. “Esta foi a primeira Rua de Vale que a Bahia teve”, diz o historiador, confirmando a importância do Rio.

Referências
https://365salvador.wordpress.com/2013/11/26/26-de-novembro-baixa-dos-sapateiros/
http://salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br/2011/02/baixa-dos-sapateiros.html
http://www.salvador-antiga.com/baixa-sapateiros/antigas.htm
http://panoramametropole.blogspot.com.br/2013/03/rio-das-tripas.html
http://carlosnovaesribeiro.blogspot.com.br/2009/09/rios-da-cidade-sao-pouco-conhecidos_24.html
http://riolimpo.blogspot.com.br/2011_10_01_archive.html

Pegando um baba 3/3 - Campo de Rio Vermelho



Em 29 de maio de 1906, o Campo da Pólvora assistiu o último jogo do campeonato e já no ano seguinte a Liga transferia o certame para o Ground do Rio Vermelho, na Fonte do Boi, inaugurado em 2 de junho de 1907, com entradas pagas. Foi um Deus nos acuda para a população aceitar as novas regras: pagar para ver o jogo da bola. E muito trabalho para se deslocar de bonde, já que o lugar era bem distante do centro.

Hipódromo do Rio Vermelho
No Rio Vermelho o futebol foi praticado nos mesmos espaços onde havia se dado o turfe, ou seja, ainda não possuía um espaço especifico se valendo da adaptação de outros para acontecer, o que denota sua característica de esporte ainda em fase de organização na cidade de Salvador, mas mesmo assim, experimentou tempos gloriosos.

“o campo oficial de futebol era aqui no Rio Vermelho, a Liga Bahiana de Desportos Terrestres, e os campeonatos eram disputados aqui. Nessa época, no dia do jogo, o bairro se enchia de gente, os torcedores. Os clubes campeões daquele tempo eram o Ipiranga e o Botafogo…”.

Depoimento da Prof. Stella Calmo Teixeira no livro Rio Vermelho: projeto histórico dos bairros de Salvador. Salvador: FUNCEB, 1988.

O campo do Rio Vermelho passou a ser o campo oficial e um dos cinco autorizados pela prefeitura para a prática do esporte. Os outros eram o da Pólvora, já referido, e os da Quinta da Barra, Largo do Barbalho e Largo do Papagaio. O campo do Rio Vermelho padecia dos mesmos problemas que o da Praça dos Mártires: as pessoas atravessavam o espaço em pleno jogo; sempre tinha alguem mais agitado que dava uns empurrões no juiz e não tinha onde sentar; quem queria conforto tinha de trazer a cadeira de casa, numa carroça de burro; enfrentavam a inclemência do sol com os chapéus, de hábito na indumentária dos baianos daquele tempo, e sombrinhas improvissadas em especial para as mulheres.


Desta forma e sob esta condição, o futebol segue sendo no Rio Vermelho até que veio

“uma crise inevitável do foot-ball, crise esta que só pôde ser atribuída aos meios deficientes de condução para o Rio Vermelho, que motivaram aos poucos, o empalidecimento da estrela do foot-ball (GAMA, 1923, p. 320)”. 

Reforçando o que pareceu ser o pior problema do futebol no Rio Vermelho, Leal (2002) demonstra que 

“a cidade se espalhava, havia necessidade de se construir um campo de foot-ball mais próximo do centro para satisfazer a todos os soteropolitanos, já que o esporte bretão tinha crescido acentuadamente e os bondes chegavam ao Rio Vermelho lotados (p. 185).” 

Mesmo com a mudança do futebol para outro espaço, o Rio Vermelho continuou a ser importante para este esporte, pois, vários clubes passaram ou tiveram sede no bairro e destes, destacamos o Botafogo (1914) e o Ipiranga (1906) que usavam campos no Rio Vermelho.

Muitos anos depois, em 1919, os baianos teriam de fato um campo de qualidade. o “Stadium” da Graça, construido em terreno e por iniciativa do ex-jogador do Esporte Clube Vitória Arthur Moraes, mas isso já foi contado em outra postagem.

Referências:
https://historiadoesporte.wordpress.com/2009/11/23/rio-vermelho-um-arrabalde-esportivo-nas-terras-de-salvador/
http://www.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2012/08/27/os-primeiros-campos-de-futebol-de-salvador/
Revista Artes e Artistas: sports, theatro, humorismo e cinema, Ano IV, n. 150, Seção Sportivas, p. 150

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Pegando um baba 2/3 - Campo da Pólvora (Campo dos Mártires)


 ”Para ir ao Campo da Pólvora o caminho era um só e o veículo unicamente um. Todos iam a pé, desde São Pedro. Iam e voltavam e lá , senão tivessem amigos nas vizinhanças que lhes emprestassem cadeiras, teriam que ficar a tarde toda em pé”.
Aloísio de Carvalho Filho, revista Semana Sportive 1922


Tudo começou em 21 de outubro de 1901 quando José Ferreira Junior, o Zuza Ferreira, improvisou um campo de futebol no Campo da Pólvora, que até então era denominado de Campo dos Mártires. Zuza marcou o espaço do gol com duas pedras grandes, dez metros entre uma e outra, sendo também disputado o primeiro jogo. Em 30 de outubro de 1903 foi disputada a primeira partida internacional, por marinheiros americanos que se encontravam em Salvador e um combinado anglo-brasileiro.

Em 9 de abril de 1905, o Campo se tornou oficial com os jogos realizados da Liga Baiana de Esportes Terrestres (atual Campeonato Baiano). A estreia foi com um jogo realizado entre Internacional e Vitória, com uma vitória de 3 a 1 do Internacional. O Campo da Pólvora não tinha arquibancada. O público se posicionava pelos quatro cantos do campo que era "cercado" por cadeiras onde se sentavam as senhoras, além disso o público tinham que se vestir a rigor, pois o futebol naquela época era feito para a elite.


O Campo da Pólvora era arena mesmo. A poeira incomodava e respeitáveis médicos alertavam nos jornais quanto ao perigo dos jogadores e a torcida formada por parentes e amigos contrairem doenças pulmonares.

O Dr. Reis questionava os jogos realizados no Campo da Pólvora, com excesso de poeira para os jogadores e mesmo para o público, já que era um terreno de chão batido. Nessas condições, dizia o ilustre esculápio, a cultura física ”não podia chamar-se cultura da saúde do corpo, mas sim de ruína do corpo”.

Referência:
http://www.ibahia.com




quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Pegando um baba 1/3 - Stadium Artur Morais ( Campo da Graça)




"O lindo pavilhão da arquibancada, como um enorme jardim aéreo, mostrava no encanto de suas flores, a graça e a formosura, tocadas pelo entusiasmo da torcida, ativando com seus perfumes a alma… Senti-me vacilar, na incerteza de que estava num campo de esporte ou em um salão de baile”.
Revista Semana Esportiva 1920

O Campo da Graça tornou-se palco dos grandes acontecimentos da cidade como os exercícios de ginástica sueca praticados pelo corpo da Brigada Militar durantes as comemorações do Centenário da Independência; apresentações de bandas e fanfarras, espetáculos circenses e outras manifestações. O público frequentava o espaço, trajado a rigor, exibindo elegância, as mulheres com seus melhores figurinos e jóias.

Era o ano de 1919 e o estádio seria inaugurado em novembro do ano seguinte, construido em frente ao Café Rio Branco, entre as ruas Catharina Paraguassu e Humberto de Campos com acesso pela Avenida Euclides da Cunha. Localização estratégica, próxima da sede dos clubes da elite baiana: Bahiano de Tênis e Associação Atlética da Bahia que tinham constituído uma entidade aparte e estavam afastados do campeonato oficial. As elites aceitavam a popularização do esporte, mas a contrapartida era um campo com melhor infraestrutura.

Idealizadores

Inicialmente, os jogos de futebol eram realizados no Rio Vermelho onde existia também um hipódromo. O local era particular e a então Liga pagava uma determinada importância para a realização de seus jogos. Também se faziam jogos no Campo da Pólvora.

Nesse ínterim, um grupo de abnegados, tendo a frente o eng. Arthur Morais, ex-zagueiro do Esporte Clube Vitória e então dirigente esportivo, comprou um terreno na Graça com o objetivo de construir um estádio. Esse terreno pertencia à família Rêgo. Em 15 de novembro de 1920 o Estádio da Graça era inaugurado com a presença do então governador José Joaquim Seabra. Quando Arthur Morais faleceu, em sua homenagem, o estádio passou a chamar-se Estádio Arthur Morais.Praticamente, todos os assentos eram de madeira na parte da geral, como as arquibancadas de um circo. Na parte mais nobre, fizeram uma arquibancada em dois andares, ainda em madeira e com cobertura de folhas de zinco. Algo bem mais sofisticado! Apesar do material, ao que se sabe, nunca ocorreu nenhum desabamento no velho Campo da Graça. A madeira deveria ser de lei!

Anos de ouro

Durante três décadas o Estádio da Graça, antes denominado de “Stadium” e “Campo” foi o cenário de grandes jogos organizados pela Liga Baiana de Futebol e Federação Baiana de Futebol, inclusive “matchs” com times de outros estados e outros países e a presença ilustre de visitantes, autoridades do Brasil e do mundo.

Cenário também do primeiro BaVi, do primeiro título conquistado pelo Esporte Clube Bahia em 1931 e de muitos outros conquistados pelo Esporte Clube Vitória, Galicia, Ipiranga, Botafogo, dentre outros.

Nele também se exibiu a Seleção Brasileira em 1934 contra o Bahia, derrotando-o por 8x1, gols de Leônidas(4), Átila(2) e Carvalho Leite(2) para a seleção brasileira. Não se sabe quem fez o gol do Bahia.

A Bahia ficou de fora do mundial por falta de estádio pronto

No tempo em que a única forma de chegar à Graça era de bonde, havia a esperança de que Salvador fosse uma das cidades-sede daquele Mundial. Acanhado, o Stadium Artur Morais, nome oficial do campinho, carecia de reforma. “Deste amontoado de zincos e arquibancadas desengonçadas surgirá um estádio à altura do progresso da nossa capital(...) A nossa futura praça de esportes poderá servir de teatro para a disputa do Campeonato do Mundo”, confiava a revista.

A reforma foi projetada, plantas da nova estrutura publicadas em jornais da época. A Revista Rádio Esportes estampava o governador Octávio Mangabeira no lançamento da pedra fundamental, em pleno 2 de julho. Não saiu do papel. Segundo o pesquisador Mário José Gomes, 74 anos, foram dois os principais motivos que impediram o projeto de ir adiante. Primeiro: em uma primeira vistoria, o Campo da Graça não passou pelo crivo da Fifa. “Sequer as dimensões do campo eram oficiais. O Campo da Graça tinha menos que os 90 metros mínimos de comprimento. E naquela época já existia o padrão Fifa”, afirma Gomes. A outra questão era o lugar nobre em que ele ficava. “Os moradores da Graça, bairro de elite, protestaram. Eles não queriam a ampliação”.

Só havia outra possibilidade. Em 1939, o estado havia desapropriado uma área na Fonte Nova. Na verdade, antes mesmo da ideia da reforma da Graça, desde o início dos anos 40, já existia um projeto ousado para aquela região: a construção de uma grandiosa praça esportiva. Segundo o engenheiro Paulo Segundo da Costa, autor de biografia sobre Octávio Mangabeira, o então interventor Landulfo Alves chegou a determinar que a Secretaria de Viação e Obras Públicas fizesse o projeto.


A tarefa coube ao escritório do engenheiro Mario Leal Ferreira, que incumbiu o arquiteto Diógenes Rebouças de elaborar o plano. Com a destituição de Landulfo Alves pelo presidente Getúlio Vargas, o projeto original jamais sairia do papel. “Faltaram recursos e o novo interventor não levou a coisa pra frente”, conta Paulo Segundo, na época estudante de Engenharia. Com a eleição de Mangabeira, em 1946, voltou-se a cogitar a construção.

Apito final


Em 1951 o Estádio da Graça perdeu a sua finalidade, substituido pelo recêm construido Estádio da Fonte Nova, mais confortável e com maior capacidade de público. Prevalecia as ideias de um novo tempo em que o futebol já era concebido como um esporte de massa, paixão de multidões.

O Campo da Graça resistiu bravamente às investidas das construtoras até 1970 quando então seu espaço foi vendido e no local se construíram quatro grandes prédios.

Referências
http://www.ibahia.com/a/blogs/memoriasdabahia/2012/11/12/o-estadio-da-graca-campo-de-grandes-torneios-e-palco-dos-grandes-acontecimentos-da-cidade/
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/em-1950-a-bahia-ficou-de-fora-do-mundial-por-falta-de-estadio-pronto/?cHash=e7e276274af6e7a1d6f00852e579194c
http://salvadorhistoriacidadebaixa.blogspot.com.br/2011/04/destaques-da-graca-campo-de-futebol-da.html

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Cacau Caiu 3/3 - Uma Metrópole Colonial em Estado de Alerta


Desabamentos, Deslizamentos e Outras Tragédias Urbanas

Testemunhos Documentais de uma Metrópole Colonial em Estado de Alerta

por Prof. Jan Maurício van Holthe

“(...) a água e o fogo eram ameaças constantes à vida de todos os baianos. Ricos ou pobres, grandes ou pequenas, as moradias eram frágeis e expostas às ciladas armadas pela promiscuidade e a instabilidade do clima e do solo”. (MATTOSO, 1992, p.449)

A cidade de Salvador, em função de sua topografia acidentada, das características do solo e das práticas construtivas arriscadas adotadas por uma parcela dos moradores que, desde tempos imemoriais, promoviam construções irregulares em áreas densamente povoadas e sob grande risco de desabamentos, possui um longo histórico de pequenas e grandes tragédias coincidindo com períodos de intensas chuvas ou prolongados invernos.

A consulta a fontes primárias do período colonial e imperial da antiga capital baiana, refletindo esta infeliz realidade, fornecem testemunhos valiosos desses eventos trágicos, invariavelmente resultando em perda de vidas humanas ou grandes prejuízos materiais. Além dos incêndios[1], comuns em residências dependentes de fornos a lenha e iluminação precária, à base de velas e candeeiros, serão principalmente os desabamentos e deslizamentos de terra as principais ameaças aos moradores, especialmente aqueles residentes na Cidade Baixa - zona portuária e comercial de Salvador por excelência, densamente ocupada em função do pouco espaço existente entre a encosta da cidade e o mar - e os proprietários de edificações erguidas no cume da montanha. E na origem da maioria desses deslizamentos e desabamentos, teremos basicamente as fortes chuvas, tão comuns na cidade, como principal agente deflagrador dos nefastos incidentes.

Com um clima tropical predominantemente quente e úmido e um índice pluviométrico anual histórico beirando os 2.000 ml[2], é natural que a água – muito mais do que o fogo – represente, portanto, a principal ameaça às edificações em uma cidade como Salvador. A água e todos os problemas decorrentes de sua abundância: a perda da coesão do solo argiloso das encostas[3]; sulcos e fendas resultantes da erosão dos terrenos em declive pela descida veloz de grossos veios d’água[4] que surgem a cada enxurrada[5], expondo perigosamente os alicerces das pesadas edificações; as poças estagnadas que contribuem para a proliferação de doenças em uma cidade tantas vezes assolada por epidemias etc. Enfim, vários são os perigos representados pelas fortes chuvas, invariavelmente concentradas nos meses de inverno.

O ano de 1795, por exemplo, conforme registram os Termos de Alinhamentos e Vistorias da Câmara do Senado[6], seria marcado por um grave episódio ocorrido no mês de abril, ocasião em que várias casas localizadas no cume da montanha, próximo ao denominado “Caminho Novo”, são arruinadas em decorrência de fortes chuvas, soterrando ao mesmo tempo outras edificações no bairro da Praia, na Cidade Baixa. Os sinais premonitórios da tragédia, contudo, já podiam ser detectados dias antes. Em 13 de abril, os vereadores, a requerimento de um grupo de moradores da “Praya e caminho novo sobre o forte de S. Francisco”, em função do “notável prejuízo que sentião as ditas suas propriedades”, já haviam realizado uma vistoria[7] nos

(...) acrescimos que tinhão havido nos quintaes superiores, e cazinhas e muros como se via em varias, alem dos muros arruinados que com o invernozo tempo tinha despegado da montanha quantidade imensa de entulho (...) de que com o pezo algumas delas paredes interiores tinhão gemido e rachado.

E assim, apenas oito dias após essa inspeção, no dia 21 de abril, em decorrência de um período de intensas chuvas, várias propriedades da encosta são arruinadas[8]; outras, na Cidade Baixa, são inteiramente soterradas. Logo em seguida, por ordem do Governador Geral, os vereadores, acompanhados de grande comitiva composta de engenheiros, mestres pedreiro e carpinteiro etc., promoveram um rigoroso exame em todas as edificações “que tinhão escapado ao estrago (...) das propriedades cahidas e destruhidas”. Em cada propriedade vistoriada, uma série de medidas foi imposta aos “senhorios”, com prazo determinado para serem tomadas, sob pena de severas multas e mais alguns dias de prisão. São exemplos dessas providências, todas extraídas de uma vistoria[9] realizada em 22 de abril no “Sítio da Cruz do Pascoal” em decorrência do referido decreto governamental:

Na caza deque he Senhorio Jozé Rodrigues Lopes unanimemente se assentou que devia com a mayor brevidade concertar todos os Sucalcos que sustinhão as terras do seu quintal como tambem metter pez direitos novos para sustentarem a varanda da caza, e que demolise um tanque que tem sem uso, e cortar grande copado das arvores que tem plantadas sobre os mesmos Sucalcos, aliviando assim o grande pezo que deita para a parte opposta a montanha (...). Na caza deque he Senhoria a Religião do Desterro se assentou que na frente [e] fundo da dita Caza em toda a sua extenção devia fazer alicerce para a segurar por se achar sobre a superficia da terra. Na caza da Religião de São Bento se assentou que deve escorar a caza pela parte de detraz, e desmanchar a parede que se acha em metade muito arruynada como tambem o vigame (...) por ter algumas vigas já partidas. Na caza deque he Senhorio Jozé Alz’ Coelho se assentou que devia desmanchar o cano e todos os muros e escorar a sacada pela parte de detraz para concertar toda a parede que se acha arruynada deixando ficar ilezo o Sucalco que sustenta as terras da mesma Caza. Na caza de que hé Senhorio o Convento do Carmo se assentou que demolisse a parede do fundo, e levantase outra de novo, e o mesmo practicase na caza contigua do dito Convento. (...) O que sendo visto e Ouvido pela Vereação mandou aos Sobreditos Senhorios e seus Procuradores que logo incontinente assim se observase debaixo da pena de proceder a Rigoroza prizão e execução se assim o não cumprissem (...).

Dois anos e três meses após este incidente[10], em atenção a uma “Portaria do Senhor Governador”, os peritos ainda mantinham uma estreita vigilância sobre dezenas de edificações erguidas na Ladeira da Misericórdia e seus arredores, obrigando novamente os proprietários a uma série de demolições emergenciais em nome da segurança:

(...) Em caza de D. Anna Quiteria Cardoza da parte do mar; se assentou que devia desmanchar todos os Sucal[cos] (...) e demollir os pilares ultimos, que serve de apoio a cozinha. (...) Na caza do Recolhimento de São Raimundo: demollir o pillar da parte do Sul e Sacadas. Na caza de que hé Senhorio Jozé Simoens Coimbra cortar as Sacadas e o telhado a proporção da mesma. Nas cazas de Sobrado do Mosteiro de São Bento cortar as duas Sacadas e destruhir a parede da impena da parte do norte athe o asualho. Na caza de Sobrado da Santa Caza reformar o sucalco e destruhir as tres varandas. Na caza de defronte da mesma Santa Caza da parte de terra desmanxar a entrada da porta da parte de sima para a reedificar e desembaraçar o Conducto que hé o motivo da sua Ruyna. Na caza ou Ruynas de que são herdeiros Jozé Teixeira, e Manoel Rabelo desmanchar o paredam que se acha todo arruinado, e o mesmo nas cazas de que he Senhoria Dona Brittes d[e] Almeida. Na caza (...) do Mosteiro de São Bento reformar o Sucalco e desfazer a varanda (...).

Outros pesquisadores, em datas posteriores, também registraram eventos semelhantes:

Junho e julho de 1813, por exemplo, foram terríveis: 45 dias de chuvas ininterruptas provocaram desmoronamentos em toda a face da cidade voltada para o mar. (...) Em oito dias, uma parte inteira da Cidade Alta desabou sobre a Cidade Baixa. (...) Quinze dias depois, novos deslizamentos de terra, desta vez nas proximidades do forte de Santo Antônio. (...) Trinta anos depois, em 1843, na estação das chuvas, novamente os solos começaram a se mexer (...) e novas mortes e destruições ocorreram. (MATTOSO, 1992, p. 449-450).

O clima quente e úmido, por outro lado, também favorecia outra prática comum em Salvador: a produção doméstica. De fato, hortas e pomares eram facilmente encontrados em quase toda a cidade. Rara era a casa que não tinha o seu quintal e raro era o quintal que não tinha a sua pequena produção de subsistência: hortaliças, ervas medicinais[11], um modesto galinheiro[12], árvores frutíferas de fácil manejo: laranjeiras, coqueiros e bananeiras, por exemplo, são frequentemente mencionadas em relatos de antigos viajantes estrangeiros à Bahia oitocentista[13].

(...) e esta é uma das armadilhas da natureza – as terras onde foi edificada a cidade de Salvador são boas para hortas e pomares, mas não são recomendáveis para a construção. Até o declive mais íngreme, o do reverso da falha, desce em pequenos degraus para a praia ou dirige-se para o norte, alcançando os terrenos sedimentários e oferecendo, aos bananais e às culturas de árvores frutíferas, uma exposição magnífica ao sol nascente. (MATTOSO, 1992, p. 46)

Essa prática, contudo, também acabou contribuindo para aumentar os riscos de desabamentos e deslizamentos na cidade por uma série de motivos. Em primeiro lugar, a plantação de bananeiras, em especial, mostrou-se particularmente nociva, na medida em que as raízes curtas dessas árvores não conseguiam fixar o solo e com isso, durante episódios de fortes chuvas, aumentavam os riscos de acidentes[14]. O cultivo da bananeira nas encostas, portanto, a partir do século XIX, naturalmente passou a ser coibido pelas autoridades municipais. Em Portaria de 13 de abril de 1831[15], por exemplo, ordenava o Senado da Câmara ao Alcaide para notificar a Antônio Coelho Fragoso “para demolir as cercas, e arrancar as Bananeiras que tem no seu Quintal fronteiro ao Trapiche do Barnabé”:

O Alcaide vá quanto antes demolir as Cercas, e arrancar as Bananeiras do quintal de Antônio Coelho Fragoso, que é fronteiro ao Trapiche do Barnabé, onde já infelizmente corre terra da montanha, e causam grandes estragos à Cidade Baixa.

Por outro lado, para ampliar a área dos quintais – e com isso assegurar um maior aproveitamento do terreno, especialmente daqueles localizados em locais de grande declividade -, alguns moradores recorriam à construção de terraços, erguendo grossos – e pesados – muros “de sucalco” em sucessão, expondo os moradores das zonas mais baixas a novos perigos, tanto em função da má construção de muitas dessas alvenarias de pedra e cal quanto pelo acúmulo indevido de água em alguns dos tabuleiros formados, aumentando perigosamente o peso da terra sobre a encosta. Ainda como exemplo dos prenúncios do trágico evento ocorrido em 21 abril de 1795, temos o registro do pedido de vistoria[16] encaminhado ao Senado da Câmara por Paulino da Silva Lisboa no dia 18 daquele mesmo mês,

(...) em que declarava ter no dia onze do corrente, recebido um Concideravel prejuizo, em toda a fabrica e Caza do seu Alambique, e cozinha da caza imediata, por ter cahido toda a dita Caza de Alambique, submergindo quatro escravos que evidentemente fabricavão, alem de outra q’. mizeravelmente escapou, e se acha em grande perigo de vida, restando desta grande Ruina unicamente as paredes da frente, procedendo todo este estrago das muitas aguas que vinhão das terras da sobredita Rossa, que fica na eminencia e se percipitão [sic] pelas Rebanceiras das propriedades, por haver incanado em diversos taboleiros; esendo ahi adita Vereação e sobreditos Engenheiro e peritos: dicerão que se observava na terra suprior [sic] ao dito Alambique, terra esta dismontada em trez tabolleiros, afim de formozear e fazer plana adita terra, de onde procedeo quebrar esta no ultimo tabolleiro, e hir afazer o estrago no dito Alambique (...).

Os “tabuleiros” erguidos nas encostas, portanto, vão continuar sob a mira das autoridades em diversas vistorias posteriores, à medida que continuam a provocar estragos em propriedades públicas e particulares. É o que vamos testemunhar, por exemplo, no relato da vistoria[17] de oito de março de 1809, realizada nos “sucalcos” do quintal de Thomé Alvares Braga, que, dividido em três sucessivos níveis, situava-se logo acima da Rua do Pilar:

Aos oito de Março de mil, oito centos e nove annos nesta Cidade da Bahia, e Rua d[a] Cruz do Pascoal no quintal de Thomé Alz.’ Braga se achou a Vereação actual commigo, e os Medidores do Concelho a Requerimento de Miguel José Bernardino para effeito de se examinar a Ruina, que ameaça os Sucalcos do dito quintal, q’ fasem frente a Rua direita do Pillar; o que examinado se assentou, que as agoas com effeito havião cauzado a Ruina nos ultimos Sucalcos do fundo, e que continuando facilmente se arruina a montanha com irreparavel prejuizo do Supplicante, e mais moradores da dita Rua do Pillar: a vista do que determinarão, que o dito Thomé Alz.’ Braga seja obrigado a demolir incontinente os Canos que tem no Sucalco superior, e no termo de trinta dias fazer Reparar os dois Sucalcos inferiores, fortallecendo-os de sorte, que sem perigo da queda da montanha deção as agoas espraiadas, evitando por este modo a ruina, que ameaça, à pena de se mandar fazer à custa do dito Thomé Alz.’ por Ordem deste Senado (...).

Mesmo quando os muros eram menos robustos, servindo apenas para preservar os moradores dos olhares indiscretos dos vizinhos ou para a segurança de sua propriedade, ainda representavam uma ameaça e motivo de preocupações justificadas quando erguidos muito próximos do cume da montanha ou diretamente sobre o solo escarpado. Em 1812[18], por exemplo, enquanto estava sendo construída uma muralha de contenção na “Ladeira do Caminho Novo”, parte do muro do quintal do “Reverendo Deão desta cidade” desabou inesperadamente sobre a importante obra pública, levando os vereadores a decidir que o proprietário “deveria demolir o resto do muro, logo que o tempo permitisse, e que no lugar de muro de pedra e cal, que a localidade não permitia, fechasse seu quintal com estaca de pau”.

Contudo, não eram apenas os muros dos quintais ou paredões dos tabuleiros que rolavam encosta abaixo, para desespero dos moradores e comerciantes da Cidade Baixa: às vezes cômodos inteiros, especialmente cozinhas externas[19] e varandas, desabavam sobre eles, com severas consequências. Na relação das providências urgentes a serem tomadas pelos moradores das casas vistoriadas após os trágicos eventos de abril de 1795[20], encontramos, dentre outras, a ordem para que “na casa de que é Senhoria D. Anna Francisca das Mercez”, fosse logo desmanchado “o fogão que se acha despegado com Ruina eminente”, bem como assentou-se que na “casa de que é Senhorio Antonio Garcia da Roza”, fosse demolida “a mesma casinha que tem no fundo do Quintal; como tambem os muros lateraes, e o muro ou sucalco que serve de sustentar a terra cortando-o em escarpa pela metade da sua altura”. Em vistoria[21] de 13 de fevereiro de 1796 realizada na “Rua do Caminho novo a sahir ao forte de Sam Francisco a Praya desta Cidade”, continuando-se na

(...) deligencia e exame nas Ruynas da Caza da Irmandade do Rozario da Baixa dos Sapateiros que ficam unidas a caza de Felipe Manoel de Almeida, se assentou q.’ logo lancassem abaixo o resto do telhado da cozinha que existia, e que cortasem a forma de escarpa as paredes de um e outro lado por se achar ate o assoalho desaplumada, cauzando mais Ruyna as sobreditas cazas contiguas, e para o proximo Inverno de prejuizo ao Publico que por ali tranzitar (...).

Em função disso, as autoridades, naturalmente, procuravam restringir – nem sempre com sucesso - a construção de sobrados nas encostas, receosas do excesso de peso aplicado sobre o cume da montanha. Em 29 de outubro de 1827, por exemplo, durante a vistoria ex officio[22] realizada na casa de João Antônio Ribeiro situada na Rua direita de Santo Antônio além do Carmo[23], o “Medidor do Conselho Pedro Ferreira dos Santos” descobriu uma série de irregularidades na obra, relatando

(...) achar não estar a mesma obra conforme a determinação do mesmo termo, que apenas lhe concedera se edificar a Casa térrea que já tinha, uma água furtada sobre essa em frente da Rua com direção até a parede central da Sala da mesma casa térrea, e como tivesse excedido, e tivesse edificado um sobrado até a terça parte do comprimento da Casa em contravenção à mesma licença que o tivera no ato da sobredita Vistoria, e tendo a Vereação em consideração os Acordãos deste Senado solenemente tomado com assistência dos Peritos e Engenheiros por ocasião dos desastrosos acontecimentos do mês de Junho de 1812, e principalmente do Livro 24 (...) no qual expressamente se recomenda que se não possa edificar no vértice da Montanha senão Casas térreas como medida indispensável para segurança pública, e conformando outrossim com as Posturas do Senado e Leis Municipais a este respeito, e (...) com que o mesmo continuou na edificação da obra, assentarão unanimemente, que reduzisse a Casa térrea que (...) dantes tinha, ficando sem efeito a licença concedida pelo dito termo de Vistoria de oito de Novembro de mil oitocentos e vinte seis (...).

E, curiosamente, nem mesmo as obras públicas dos inúmeros paredões construídos na montanha para dar maior segurança aos moradores estavam isentas de provocar acidentes. De fato, encontra-se no Arquivo Público do Estado (APEB) um interessante requerimento[24] endereçado ao Presidente da Província, escrito em janeiro de 1847, no qual “D. Gertrudes Izidra de Campos Souza” reclamava das obras de “rebaixo da montanha” informando que

(...) tem os trabalhadores d’aquele lugar feito o maior dos prejuízos (...), lançando grandes pedras, que rolam da montanha (...), de maneira que uma delas deu com a porta da Cozinha a dentro, maltratando a uma sua escrava, e quebrando tudo que alcançou (...)

Por fim, não menos ameaçadores à segurança pública eram as poças de água estagnada, especialmente quando misturada com lixo e toda espécie de “imundícies”[25] nas zonas mais baixas da cidade, fonte de inúmeras doenças[26]:

Aos vinte e trez de Maio de mil e oito centos annos nesta Cidade da Bahia e lugar das Tulhas onde foi vinda a Vereação (...) a Requerimento dos moradores daquelle lugar para effeito de proceder a exame na cauza da inundação d’agoa que sofrião as Propriedades com risco de grande prejuizo dellas pela falta de suficiente tranzito das agoas que vem da ladeira da Conceipcão, e procedendo o Senado na Vistoria, e dito exame achou, que em razão de se ter feito hum muro defronte das ditas cazas, e das mesmas Tulhas para armazem de Madeiras do Arsenal, e se deixar tam somente huma grade no dito muro ao nivel do terreno para tranzito das agoas, que vem da ladeira da Conceipcão demorão-se as mesmas agoas, e ficão extagnadas na baixa, desorte que, cauzão prejuizo as Propriedades que ficão paralelas ao dito muro por não haver a expedição suficiente (...). (Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800: fl.237v)

Numa época em que ainda se recorria à à teoria dos miasmas[27] para explicar a origem de grande parte das doenças que afligia o ser humano, era natural que qualquer “vapor” malcheiroso ou “infecionado” nas vizinhanças de suas propriedades assustasse os moradores de Salvador, conforme revela o conteúdo da vistoria[28] realizada no final de janeiro de 1803 nos “Estaleiros da Preguiça” e “Praia” da cidade:

Aos trinta ehum deJaneiro de mil, oito centos e trez annos nesta Cidade da [Ba]hia, e sitio do Estaleiro da Preguiça e Rua da Louça, onde foi vinda aVereação (...) a Requerimento dos Proprietarios das Cazas ahi situadas, para effeito de se examinar o estado em que se achava a Sobredita Rua, pelo prejuizo, que cauzava não só a aquelles habitadores, mas aos de toda a Vizinhança, pelos infecionados vapores, que se elevão da imundice estagnada por falta de de[sa]guadoiro; e procedendo no dito exame acharão que na Rua da Louça da parte de terra havia [h]um entulho, que impossibilitava o seu tranzito, e fazia in[h]abitaveis as Cazas ahi situadas, fazendo deformidade concideravel; e na mesma Rua da parte do mar acharão, que o entulho, que ali setinha acumulado, proveniente das agoas, que deccorrião da Ladeira da Conceipção, se tinha elevado em hum sitio dois palmos, em outro trez, e trez e meio; de sorte, que a Rua ficava muito superior aos baixos das mesmas Cazas (...).

Tendo em vista a gravidade dos problemas expostos nas fontes documentais, seria lógico supor que, diante das constantes ameaças à cidade, as autoridades municipais, encarregadas de zelar pela segurança dos moradores e suas propriedades, não hesitassem em promover uma série de medidas preventivas e impusessem com rigor um conjunto de normas que coibissem as irregularidades ou práticas nocivas dos moradores das zonas urbanas mais populosas, especialmente em áreas de terrenos acidentados:s:

Aos dezaseis de Março de mil sette centos e noventa e sette annos nesta Cidade da Bahia e (...) Ladeira que desce da Praça a Praya desta cidade, onde foi vinda a Vereaçam que noprezente serve, com migo Escrivam (...) e os Medidores e Mestres Pedreiros abaixo assignados, a Requerimento do Povo e moradores da Cidade Baixa pela eminente Ruina em que se achava a Montanha que pega da Igreja velha de S. Pedro dos Clerigos, a terminar os Mirantes e Dormitorios da Igreja dos Extintos Jezuitas, que toda se acha despegada, e de si lansando quantidade de terra que tem intulhado por infinitas vezes as Propriedades que ficam em frente alem de se acharem no risco de que com maior impurram se vejam destruhidas e lançadas por terra por se achar a mesma Montanha abalada, e com grandes cavaçoens procedidas das aguas que em si tem recebido que com o pezo della vai diariamente aluindo as mesmas Propriedades, e sendo ahi a dita vereação com os referidos Mestres (...) declararam estar em grande pirigo aquella montanha e que se fazia necessario não só para segurança da mesma montanha que estava proxima a desmontarse sobre as propriedades o que ficava eminente fazerse logo um paredam da grosura proporcionada ao alicerce que sencontrase, principiando do muro que vem da fonte do Pereira a findar no que se acha escorado a subir para a mesma Ladeira da Mizericordia (...). (Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.174r)

E de fato, ainda que com certo atraso, as posturas municipais, aos poucos, iam sendo formuladas. Em 25 de fevereiro de 1831, por exemplo, várias posturas[29] foram assinadas ao mesmo tempo pelo Senado da Câmara expondo claramente as condutas consideradas impróprias pelas autoridades. Merecem destaque, por exemplo, posturas como a de número 30 - “Nenhuma pessoa poderá conservar imundos, ou com águas estagnadas, e corruptas, os quintais e pátios de suas casas. Pena de 8$000, ou oito dias de prisão” - e, particularmente, a de número 54[30]:

Ninguém poderá escavar, arrancar árvore, ou tirar pedra desde a falda da montanha da Cidade no espaço compreendido do Unhão ao Noviciado: pena de 30$000 e oito dias de prisão. A Câmara proíbe expressamente, debaixo das mesmas penas, que se edifiquem sobrados no cume da montanha na extensão mencionada.

Infelizmente, no entanto, os antigos documentos – e seus escribas – não estão preocupados em explicar o motivo da insistência dos moradores em descumprir as normas ou em adotar com frequência práticas construtivas tão arriscadas. Podemos apenas imaginar que a necessidade falasse mais alto que a segurança; ou seja, que a falta de espaço para a zona de serviço das casas, para a pequena produção de subsistência, para a ampliação das edificações espremidas em lotes estreitos e compridos etc., acabasse prevalecendo sobre o medo de ver tudo desabar na primeira enxurrada. O fato é que, por muito tempo ainda,

(...) sempre presente e sempre constante foi, na cidade do Salvador a preocupação com o deslizamento de terras na montanha. Um inverno mais forte, uma chuva mais prolongada e, da Conceição ao Pilar, havia as vítimas de soterramentos. Na Rua Direita do Palácio, no Paço, em Santo Antônio além do Carmo, uma cozinha ou um “quartinho”, uma sala de fundo, sem raridade, despencava ribanceira abaixo. (TEIXEIRA, 1986, p.81).

REFERÊNCIAS

Fontes impressas

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA. Tombo dos Bens das Ordens Terceiras, Confrarias e Irmandades da Cidade do Salvador Instituído em 1853. Bahia: Imprensa Oficial, 1948.

CÂMARA MUNICIPAL DE SALVADOR. Actas da Câmara: 1765-1775. Salvador: Câmara Municipal, Fundação Gregório de Mattos, 2010.

MATTOSO, Kátia de Queirós. Bahia, século XIX: uma província no império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Dez Freguesias da Cidade de Salvador. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986.

PORTUGAL, Luis de Almeida, Marquês do Lavradio. Cartas da Bahia: 1768-1769. Brasília: Ministério da Justiça; Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972.

SPIX, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820 por Spix e Martius. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: INL, 1976.

TEIXEIRA. Cid. Bahia em Tempo de Província. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986.

VERHUELL, Q. M. R. Minha Primeira Viagem Marítima: 1807-1810. Salvador: Edufba, 2009.

VIANNA, Hildegardes. Antigamente era assim. Rio de Janeiro: Record; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1994.

Fontes em meio digital

BATTISTELA, Carlos. Saúde, doença e cuidado: complexidade teórica e necessidade histórica. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2014.

Fontes manuscritas - Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AMS)

Portarias: 1817 a 1831.

Posturas: 1829 a 1859.

Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800 / 1800-1812 / 1817-1827 / 1837-1841.

Fontes manuscritas - Arquivo Púbico do Estado da Bahia (APEB)

Seção de Arquivo Colonial e Provincial – Presidência da Província – Tesouraria – Propriedades Urbanas (1826-1874) – Série 4651.


[1] “Em junho de 1833, (...) o fogo grassou por toda a parte da paróquia da Sé situada atrás da catedral (...). Em 1837, durante a Sabinada, (...) bairros inteiros foram destruídos. Em 3 de novembro de 1848, o fogo irrompeu na Cidade Baixa, ameaçando o prédio da Alfândega (...). No ano seguinte, as chamas devoraram os trapiches da Quarta Prensa, próximos da igreja do Pilar; em 1850, outro galpão do porto, com dois mil caixotes de açúcar que armazenava. Em 1856, mais dois entrepostos, o Quirino e o Pilar; em 1857 mais um. Em 1859, foi o prédio do Banco do Brasil que pegou fogo, mas dessa vez uma ação rápida e bem coordenada permitiu salvar a maior parte dos papéis e valores. (...) Em 1876, ocorreram pelo menos sete incêndios de grandes proporções na Cidade Alta e na Cidade Baixa, e os números não decresceram muito nos anos seguintes. O fogo ameaçava sobretudo as zonas comerciais da cidade, mais vulneráveis por causa da multidão que entupia as ruas estreitas”. (MATTOSO, 1992, p.450-51).

[2] Secretaria do Meio-Ambiente do Estado da Bahia. Indicadores Ambientais – índice Pluviométrico. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2014.

[3] Nas palavras de Kátia de Queirós Mattoso, o solo das encostas de Salvador era composto de uma “argila margosa, escorregadia” (MATTOSO, 1992, p.46).

[4] “(...) Que a cauza da absoluta deste [ef]feito, proce[dia] da exorbitante força com que as agoas das chuvas descião por aquella pozição, fazendo desligar, e desunir a adherencia dos principios constituintes daquellas partes (...)”. (Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.209r)

[5] “Aos onze dias do mez de Março de mil, settecentos, noventa e nove annos, nesta Cidade da Bahia, e Rua, que vai para a Portaria de São Francisco, onde foi vinda a Vereação, que no prezente serve, com migo Escrivão ao diante nomeado, os Medidores do Concelho, e Mestres Pedreiros para examinarem o Cano chamado de João de Freitas, q.’ se entopia, e fazia, a força d’agua da enxurrada, e entulhos, que os moradores deitavão, huma Ruina irreparavel nas Propriedades vizinhas (...)” (Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.205r).

[6] Coleção de documentos do Arquivo Histórico Municipal de Salvador (AMS) que abrange um recorte temporal bastante expressivo: 1724 a 1891.

[7] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.140r.

[8] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.142v a fl.147r.

[9] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.145r e fl.145v.

[10] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.179v.

[11] APEB, 1948, p.69.

[12] VIANNA, 1994, p.112.

[13] “O mais bonito adorno dessa extensa casaria são os muitos jardins, situados de permeio, que embora raramente tratados, conservam todavia, o ano inteiro, o verde viçoso de suas laranjeiras e bananeiras” (SPIX, 1976, p.131). Ou ainda: “Na medida em que navegávamos para o interior, a impressão que aquela soberba região nos causava ficava ainda mais forte. Em um morro bastante elevado e com muitas árvores – dentre as quais as bananeiras, que logo atraíram a minha atenção com as suas folhas largas – situava-se o convento de Santo Antônio da Barra, caiado de branco e com duas torres pontudas”. (VERHUELL, 2009, p.121).

[14] SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ. Deslizamentos. Disponível em: . Acesso em 07 dez. 2014.

[15] Portarias: 1817-1831. AMS, manuscrito, 122r.

[16] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.142r.

[17] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1800-1812. AMS, manuscrito, fl.194v.

[18] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1800-1812. AMS, manuscrito, fl.281r.

[19] Em vistoria realizada em julho de 1820 na residência que Anna Mathilde Lopes possuía na Rua Direita de Santo Antônio além do Carmo, ao avaliarem a concessão da licença solicitada pela requerente para “fazer nova frente de casa térrea, e demolir a que tem para novo prospecto”, os peritos descobriram que em uma das casas vizinhas, pertencente à Ordem Terceira de São Francisco, haviam construído “um acréscimo, ou cozinha, que a dita Casa da Ordem, sem licença (...) lançou por cima da montanha, sendo isto tão proibido”. (Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1817-1827. AMS, manuscrito, fl.102v.)

[20] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.144v e fl.145r.

[21] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1775-1800. AMS, manuscrito, fl.160v.

[22] Vistoria realizada sem provocação de nenhuma parte, apenas por dever do “ofício”.

[23] Termos de Alinhamentos e Vistorias:1817-1827. AMS, manuscrito, fl.297r.

[24] APEB – Seção de Arquivo Colonial e Provincial – Presidência da Província – Tesouraria – Propriedades Urbanas (1826-1874) – Série 4651.

[25] Termos de Alinhamentos e Vistorias:1775-1800. AMS, manuscrito, fl.204v.

[26] Ao desembarcar em Salvador em 1768, o Marquês do Lavradio (D. Luis de Almeida Portugal: 1727-1790), por exemplo, na condição de Governador da Capitania da Bahia, assombrara-se com o estado da população local, registrando em documento que era composta “tudo de gentes doentes, e que havia muito tempo que já não logravam saúde” (PORTUGAL, 1972, p.118).

[27] “A teoria dos miasmas explicava o surgimento das doenças a partir da emanação do ar de regiões insalubres (a origem da palavra malária vem daí: maus ares)”. (BATTISTELA, s.d.)

[28] Termos de Alinhamentos e Vistorias: 1800-1812. AMS, manuscrito, fl.42r.

[29] Posturas: 1829-1859. AMS, manuscrito.

[30] Esta postura, por sinal, foi alterada em 1848, ampliando-as a área com restrições: “...no espaço compreendido desde Santo Antônio da Barra até o Noviciado” (Posturas: 1829 a 1859. AMS, manuscrito, fl.100r).

O Cacau Caiu 2/3 - O Motel Mustang

O motel que se foi na chuva

   Neste post, trago uma das tragédias mais lembradas de Salvador, pelas vítimas fatais e pelo Folclore existente sob e sobre os escombros, numa narração que nos remete a 1989. 

POR JACIARA SANTOS – 21 DE ABRIL DE 2010
PUBLICADO EM: COM A PALAVRA...
Com a palavra...
Valter Souza Menezes*

   Meu querido e amado pai sempre dizia que não existe coisa mais rápida no mundo do que o pensamento. Ele sempre repetia essa frase quando estávamos nas refeições familiares e lembrava de algo do passado. Pois bem. Com essas terríveis e fortes chuvas que causaram mortes e danos irreparáveis em muitas famílias no Rio de Janeiro, aqui em Salvador e em outras terras, fui buscar em fato lá nos idos do final dos anos 1980, mais precisamente em 19 de maio de 1989, quando um monte de terra correu na Avenida Suburbana e um motel foi morro abaixo. Água de chuva forte descendo morro, não tem quem segure! O destaque da imprensa está sendo primoroso para a tragédia carioca, mas colocar pessoas altamente fragilizadas, diariamente, para dar depoimentos chorando, é demais para todos…


   Bem voltemos ao fato relatado acima, no qual casais morreram quando estavam dentro do motel, pois foram atingidos fatalmente pela lama, que desceu do alto do bairro de São Caetano. Também morreram alguns funcionários do motel. Naquela época, eu era 1º Tenente da PM e trabalhava no serviço de radiopatrulhamento (RP) na área do 8º BPM, o famoso Dragão, que tinha no seu efetivo mais de um mil PM lotados. Sua área de responsabilidade era toda a Suburbana, Cidade Baixa, Comércio, Avenida San Martin, todo o lado esquerdo da BR 324 (sentido Salvador-Feira de Santana, até o viaduto do CIA) e seus bairros, além das Ilhas de Itaparica, Madre de Deus etc. Era chão!

   O 8º Batalhão era uma espécie de universidade com uma área enorme! A sede da unidade, no meu tempo, era no Quartel de São Joaquim, onde funciona hoje umas das quatro Rondesp. No primeiro estalo da estrutura do motel, chamaram a PM pelo 190. Um cabo que estava de serviço de RP na madrugada fria da Suburbana, rumou até o motel, para conhecer a situação e evacuar o local, caso fosse necessário. Já pensou que situação?…

   Não sei por quanto tempo o policial ficou dentro do estabelecimento. Ao chegar lá e iniciar os contatos com os solicitantes e usuários, o imóvel começou a cair, vindo dos fundos uma enorme massa de terra, folhas, cimentos, árvores e pedras. Uma grande cortina de contenção de cimento que segurava o morro se rompeu. O acesso atrás do motel que era a saída dos carros para a avenida, ficou tomado pela terra.

   A matéria saiu em rede nacional, já que era um fato relevante para os anos 80. Como em muitos desabamentos, era aquela velha história do lixo jogado pela encosta, água acumulada e imóveis sem estrutura construídos sem técnicas e de forma inadequada na parte alta. No livro 1808 do escritor Laurentino Gomes – por sinal, li essa parte na semana da tragédia do Rio e recomendo a todos, para conhecerem um pouco mais da história real do nosso Brasil e da família monárquica portuguesa – na sua página 236, diz sobre os grandes morros do Rio de Janeiro, que o morro “tira a elegância de vista”, impede que os ventos entrem na cidade e “conserva na sua base por muito tempo as águas que recebe das chuvas”. Se conserva água, para algum lugar, um dia, ela terá que ser lançada. Foi o que ocorreu no morro do motel, penso.

   O cabo da Briosa não morreu por sorte, pois saiu correndo pela ladeira abaixo que dava acesso à Avenida Suburbana, pulando, como um gato assustado, o muro da curva de saída do estabelecimento “amoroso”.  O seu gorro de pala azul ficou caído no mato, do local de onde ele se jogou para não morrer. Outros também fizeram o mesmo percurso com ele, na hora do perigo. Por sorte, a entrada do motel onde estava a viatura, nada sofreu. Eu que encontrei  a cobertura (gorro), ao amanhecer, dentro do mato. Estava entrando de serviço às 7h, quando encontrei o gorro azul molhado, pertencente ao cabo, cujo nome não me lembro agora, mas que estava escrito na parte interna da peça.

   O Corpo de Bombeiros começou, logo na madrugada, a tentar
socorrer os vivos e retirar os mortos. Trabalho árduo, penoso e muito cansativo para os PM do CCB (no início da minha carreira, 2tive o prazer de trabalhar no CCB por seis meses!). O problema maior estava por vir, para saber quem estava dentro dos apartamentos daquele motel, vivo ou morto. A imprensa logo veio, querendo filmar e documentar tudo, mesmo com a barreira que o Corpo de Bombeiros tinha colocado, mas nada adiantou. Era o furo da noticia trágica com mais de sete mortos! Bloquearam a Suburbana, que se chama Avenida Afrânio Peixoto – até hoje não entendo o motivo daqueles postes de iluminação no meio da via – mas a chuva não parava de maneira alguma. A lama continuava descendo.

   Outro local também desabou na Suburbana, era uma pedreira perto do Lobato. Também houve registro de mortos e feridos. Muitos danos e pessoas desabrigadas. Os PM do Dragão sempre fizeram coletas de roupas, material de higiene e limpeza para essas pessoas desabrigadas. Era uma coisa espontânea de que todos participavam.

   As pessoas se aglomeravam na porta do motel desabado, não
para saber se havia sobreviventes, mas para conhecer quem estava lá dentro dos apartamentos. Foi um suspense grande para todos! Um carro Chevrolet/Caravan, cor violeta, com cruzes nas janelas, de uma funerária da área, já estava perguntando se tinha algum familiar ali por perto. Alguém disse: “Morre o boi a bem do urubu”!

   Saí de serviço às 19h, muito molhado, mas sem saber também quem estava lá dentro, mas cheio de curiosidade, pois o pessoal da Cidade Baixa onde eu morava na época, também frequentava aquele estabelecimento. A imprensa, por sua vez, não deu os nomes. “Tragédias ocorrem em qualquer local!”

*Valter Souza Menezes é major da PM-BA, comandante da Rondesp/Atlântico e bacharel em Direito


    No deslizamento,  33 quartos do motel foram atingidos. Alguns casais conseguiram fugir, porém, 08 pessoas não tiveram a mesma sorte e morreram esmagadas por toneladas de lama e entulho.